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Umbanda: A Religião da Encruzilhada, do Branco, do Preto, do Índio e do Espírito

Entre o Céu e a Terra, Entre os Povos e os Tempos

A Umbanda é brasileira. Não no sentido estreito da origem geográfica, mas na complexidade que define o Brasil: cruzamento de culturas, conflitos históricos, reinvenções espirituais. É uma religião nascida das margens, dos terreiros, dos centros urbanos e das dores não atendidas pelos altares tradicionais.

Trata-se de um sistema espiritual que funde elementos africanos, indígenas, católicos e kardecistas, em um corpo ritualístico vivo, acessível, ético e profundamente simbólico. Umbanda é o Brasil em transe — e em oração.

1. Origem: Um Grito de Espírito em 1908

A Umbanda surge oficialmente em 15 de novembro de 1908, quando o jovem médium Zélio Fernandino de Moraes, de apenas 17 anos, incorpora o espírito de um caboclo — o Caboclo das Sete Encruzilhadas — e anuncia o nascimento de uma nova religião.

“Não venho para combater nenhuma religião, mas para afirmar a fraternidade entre os povos.”

Essa frase ecoa o ethos da Umbanda: uma espiritualidade inclusiva, aberta a todas as raças, idades, gêneros e classes sociais. É importante dizer que práticas similares à Umbanda já existiam antes — o que Zélio fez foi organizar, nomear e consolidar o movimento.

2. A Tríplice Influência: África, Europa e América

A Umbanda nasce da convergência de três matrizes espirituais:

a) Africana:

  • Presença de Orixás herdados do Candomblé, mas com funções adaptadas.

  • Ritmos, cantos, uso do atabaque e oferendas.

b) Europeia (Espiritismo kardecista):

  • Comunicação com os mortos (mediunidade).

  • Reencarnação, evolução moral, caridade.

  • Moral cristã e terminologia espiritualista.

c) Indígena e Católica popular:

  • Culto aos caboclos (espíritos indígenas heroificados).

  • Devoção a santos católicos.

  • Uso da cruz, água benta e imagens sacras.

Na Umbanda, essas tradições não competem — elas dialogam e coexistem, cada qual com sua linguagem e sua força.

3. A Gira: Ritual, Corpo e Energia

O culto umbandista acontece nas chamadas giras — sessões mediúnicas abertas ao público, conduzidas com simplicidade, música, rezas e incorporação de entidades espirituais.

As giras seguem um ciclo:

  • Preparação: Defumação do ambiente e abertura dos trabalhos.

  • Pontos cantados: Cânticos que invocam entidades e harmonizam o espaço.

  • Incorporação: Médiuns incorporam guias espirituais (não entidades autônomas como os orixás, mas espíritos evoluídos).

  • Atendimento espiritual: As entidades aconselham, orientam e curam os consulentes.

  • Encerramento: Agradecimentos, descarrego energético e despedida das entidades.

A energia (axé) é manipulada através de rituais de limpeza, passes, banhos de ervas e trabalhos espirituais diversos.

4. As Entidades: Guias Espirituais, Não “Espíritos Qualquer”

Na Umbanda, as entidades não são cultuadas como deuses, mas espíritos elevados que se manifestam em arquétipos simbólicos e humanos. Cada linha representa valores, sabedoria e força moral.

Principais Linhas de Trabalho:

  • Caboclos: Espíritos indígenas ou indígenas simbolizados. Representam força, sabedoria da natureza, coragem. São diretos e curativos.

  • Pretos-velhos: Espíritos de anciãos africanos escravizados. Falam pausadamente, com humildade e profunda sabedoria. Curam com ervas, conselhos e oração.

  • Crianças (Erês/Ibejis): Espíritos puros e alegres. Não são infantis — simbolizam a simplicidade e o equilíbrio emocional.

  • Baianos, Boiadeiros, Marinheiros, Ciganos, Exus e Pomba-Giras: Representam tipos populares e marginalizados. São entidades protetoras, justas e muitas vezes transgressoras.

Exu e Pomba-Gira, por exemplo, não são demônios. São guardiões dos caminhos, mediadores entre o mundo espiritual e material, justiceiros cósmicos e quebradores de feitiços. A demonização dessas entidades é fruto do racismo religioso e da ignorância.

5. Os Orixás na Umbanda

Embora o culto aos Orixás na Umbanda seja menos elaborado que no Candomblé, eles estão presentes como forças cósmicas, linhas vibratórias ou guias tutelares dos médiuns e dos trabalhos espirituais.

Exemplos:

  • Oxalá: paz, fé, luz.

  • Iemanjá: maternidade, águas e amparo.

  • Ogum: justiça, abertura de caminhos.

  • Xangô: lei e equilíbrio.

  • Oxóssi: cura, caça, sabedoria vegetal.

  • Iansã: tempestades, transformação e movimento.

Cada Orixá rege uma linha espiritual e inspira o comportamento ético e emocional de seus filhos e médiuns.

6. Filosofia Umbandista: Caridade, Moral e Evolução

A Umbanda possui um núcleo ético muito claro:

  • Fazer o bem sem olhar a quem.

  • Ajudar o próximo, sem cobrar.

  • Aceitar a diversidade como sagrada.

  • Combater o ego, o vício e o orgulho.

É uma religião profundamente moralista no sentido filosófico — não impõe dogmas, mas convida à reforma íntima, à convivência pacífica e à espiritualidade ativa no mundo.

A vida é vista como um caminho de aprendizado, com várias encarnações, onde cada ser humano deve desenvolver virtudes e reparar erros.

7. Umbanda e Racismo Religioso

Apesar de sua mensagem de amor e paz, a Umbanda — assim como o Candomblé — sofre ataques, intolerância e preconceito.

  • Terreiros são invadidos e depredados.

  • Médiuns são perseguidos por grupos evangélicos radicais.

  • A mídia frequentemente desinforma ou exotiza os rituais.

A Umbanda está no centro do debate sobre liberdade religiosa, racismo estrutural e identidade cultural brasileira. Defender a Umbanda é defender o direito à diferença e à espiritualidade popular.

8. Umbandas: Sim, no Plural

Com o tempo, a Umbanda se diversificou. Hoje há várias vertentes, incluindo:

  • Umbanda Branca: com forte ênfase no espiritismo kardecista.

  • Umbanda Esotérica: incorpora elementos de teosofia e esoterismo europeu.

  • Umbanda Popular ou Tradicional: com forte influência do Candomblé e de práticas afro-brasileiras.

  • Umbandomblé: hibridismo entre Umbanda e Candomblé.

Essa diversidade, longe de fragilizar a Umbanda, mostra sua capacidade de adaptação, resistência e criatividade religiosa.

Conclusão: Umbanda é Caminho, Não Rótulo

A Umbanda não quer converter ninguém. Ela quer acolher. É religião de cruzamento: de raças, de classes, de mundos e de saberes.
Nela, o sagrado veste branco, fuma cachimbo, dança, dá risada, chora, ensina.

No final, talvez a melhor definição ainda venha das palavras de um Preto-Velho:

“Umbanda é coisa boa, meu fio. É amor que se aprende devagarinho… com fé, com chão e com silêncio.”