Lábios da Sabedoria

Portal do Aluno

O Judaísmo das Escrituras, sem Rabinos

No vasto e diverso universo do judaísmo, onde tradições se entrelaçam com interpretações milenares, os karaítas aparecem como uma corrente desconcertante — um ramo que rejeita o Talmude, despreza a autoridade rabínica e se ancora exclusivamente na leitura direta da Torá escrita. São, em essência, os “protestantes” do judaísmo medieval, embora sua história seja bem mais antiga e complexa do que qualquer paralelismo moderno pode captar.

O Surgimento dos Karaítas: Rebelião ou Retorno?

O movimento karaíta emergiu no século VIII ou IX da Era Comum, provavelmente em Bagdá ou na região da Babilônia, onde florescia o centro rabínico da yeshivá de Sura, coração do judaísmo talmúdico. Seu fundador mais conhecido é Anan ben David, um judeu babilônico que se rebelou contra os rabinos após ter sua pretensão ao cargo de gaon (chefe da academia rabínica) rejeitada. Ao invés de aceitar o veredicto, Anan propôs um retorno radical à Torá escrita, denunciando a tradição oral como uma corrupção humana da vontade divina.

Ainda que o movimento já encontrasse raízes em dissidências anteriores — como os saduceus da Antiguidade, que também rejeitavam o Talmude —, os karaítas sistematizaram uma alternativa real ao judaísmo rabínico. Eles criaram comunidades, sinagogas próprias, escolas exegéticas e até calendários distintos.

O Coração da Doutrina Karaíta: “Investiga tu mesmo!”

Ao contrário do judaísmo rabínico, que depende da halachá (lei oral codificada) e da autoridade dos sábios talmúdicos para interpretar a Torá, os karaítas ensinam que cada judeu é responsável por estudar, interpretar e aplicar a Escritura por si mesmo. Seu lema essencial ecoa em suas comunidades: “Pesquise bem as Escrituras e não confie na opinião de ninguém”.

Na prática, isso significa:

  • Rejeição total da Mishná e do Talmude.

  • Calendário próprio baseado exclusivamente na lua nova visível e nas colheitas em Israel.

  • Costumes distintos de pureza ritual, oração e vestimenta.

  • Uso literal da Torá para definir práticas — inclusive o uso de tzitzit (franjas) com fios azuis verdadeiros e o respeito estrito ao descanso sabático (sem luz, sem fogo, sem transporte).

Essa ênfase na autonomia individual, no entanto, não gerou anarquia interpretativa. Escolas karaítas de interpretação foram se desenvolvendo, como as dos sábios Yefet ben Ali e Aaron ben Elijah, que buscaram sistematizar princípios para manter a coesão doutrinária sem depender de “rabinos” no sentido tradicional.

Um Mundo Paralelo ao Judaísmo Rabínico

Durante a Idade Média, os karaítas floresceram em regiões como o Egito, a Palestina, o Império Bizantino e, posteriormente, o Império Otomano. Em muitos desses contextos, chegaram a formar uma elite culta, com escolas próprias, tradição poética, calendários astronômicos e até sinagogas magníficas — como a Sinagoga Karaíta de Jerusalém, ainda em uso.

Na Crimeia e no Império Russo, os karaítas desenvolveram comunidades específicas — conhecidas como karaítas crimchaks — que, em certos momentos, chegaram a se distinguir juridicamente dos demais judeus, sendo inclusive poupados das perseguições antissemitas por não serem “talmúdicos”. Em tempos mais sombrios, esse detalhe foi instrumentalizado até mesmo para escapar das deportações nazistas, embora a identidade judaica dos karaítas continuasse sendo negada por muitos rabinos.

Liturgia, Calendário e Vida Comunitária

A liturgia karaíta é minimalista. Não há rabinos, mas “hachamim” (sábios); as orações são baseadas em salmos e passagens bíblicas, recitadas com simplicidade. Não há tradição cabalística, nem estudo do Zôhar. O calendário se baseia na observação da lua nova e no amadurecimento da cevada (aviv), o que faz com que os feriados karaítas nem sempre coincidam com os rabínicos.

Durante a leitura da Torá, os karaítas colocam os rolos diretamente no chão, como sinal de reverência à palavra escrita, e não usam filactérios (tefilin), pois consideram essas passagens simbólicas. Também adotam códigos de pureza com base no Levítico, como separação entre homens e mulheres durante o culto, e banhos rituais após contato com sangue menstrual.

O Declínio e a Sobrevivência

Com a ascensão do judaísmo rabínico como tradição dominante, especialmente na Europa e no mundo moderno, os karaítas foram sendo marginalizados. Perseguidos por judeus e muçulmanos, ignorados pelos cristãos, confundidos com hereges ou seitas extintas, restaram poucas comunidades após os séculos XVIII e XIX.

Ainda assim, sobreviveram. Hoje, há cerca de 30 mil karaítas no mundo, concentrados em Israel (especialmente em Ashdod), na Crimeia e nos EUA. Pequenas comunidades mantêm viva a tradição, traduzem a Torá em versões próprias, publicam calendários lunares e ainda realizam peregrinações ao Monte do Templo — algo evitado pelos rabinos ortodoxos.

Karaítas Hoje: Heresia ou Guardiões da Origem?

Para muitos judeus rabínicos, os karaítas ainda são vistos com desconfiança — como hereges, “judeus que não seguem o Talmude”. Para outros, especialmente entre pesquisadores, os karaítas são uma janela viva para uma forma mais antiga, bíblica, e descomplicada de judaísmo. Um retorno, talvez, a algo mais próximo do que seria o culto judaico antes da destruição do Segundo Templo.

Seu legado é incômodo e fascinante: um povo que se negou a seguir a corrente dominante, que viveu nas margens e ainda assim persistiu. Não com gritos, mas com silêncio — o silêncio da leitura pessoal, da letra sagrada, sem comentários intermediários.