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A religião da não-violência absoluta e do pluralismo radical

O Jainismo é um dos sistemas religiosos mais rigorosos e coerentes já desenvolvidos pela humanidade. Originado na Índia por volta do século VI a.C. — contemporâneo do Budismo —, ele propõe um caminho de libertação baseado em três princípios essenciais: não-violência (ahimsa), autodisciplina extrema e relativismo epistemológico.

Enquanto o Hinduísmo dialoga com o ritualismo e o Budismo propõe a superação do eu, o Jainismo trilha um caminho mais austero e intransigente: a libertação só pode ser alcançada pela renúncia completa ao karma, ao desejo e à violência sob todas as formas, mesmo as mais sutis.

Origens e Tīrthaṅkaras

Embora suas origens sejam muito antigas — remontando possivelmente a correntes pré-védicas —, o Jainismo se consolidou em torno do mestre Mahāvīra (c. 599–527 a.C.), considerado o 24º e último Tīrthaṅkara, ou “construtor de passagens”. Os Tīrthaṅkaras são mestres que “abriram o caminho” da salvação através do exemplo de suas vidas e ensinamentos.

Segundo os jainistas, esses mestres não são encarnações divinas nem intermediários celestes, mas seres humanos que atingiram a liberação total (moksha) por esforço próprio, tornando-se jinas — “vitoriosos” sobre o ciclo do renascimento.

Princípios fundamentais do Jainismo

A doutrina jainista é centrada em três pilares, conhecidos como os Três Jóias (Ratnatraya):

  1. Fé correta (samyak-darśana) – uma visão clara da realidade e das verdades espirituais;

  2. Conhecimento correto (samyak-jñāna) – compreensão racional da doutrina;

  3. Conduta correta (samyak-cāritra) – prática ética e ascética rigorosa.

A libertação só pode ser alcançada quando os três são seguidos em harmonia.

Ahimsa: não-violência radical

Nenhuma religião levou a ideia de não-violência tão longe quanto o Jainismo. Ahimsa, para os jainistas, não é apenas evitar o assassinato ou o conflito — é não causar dano a nenhum ser vivo, inclusive insetos, microrganismos e plantas.

  • Monges jainistas usam máscaras para não matar acidentalmente seres microscópicos ao respirar.

  • Varrem o chão ao andar para não pisar em insetos.

  • Evitam trabalhos ou estilos de vida que impliquem violência, direta ou indireta.

Essa ética levou o Jainismo a influenciar profundamente figuras como Mahatma Gandhi, embora Gandhi fosse hindu. A ética jainista também implica em vegetarianismo estrito, consumo consciente e não possessividade.

Cosmologia e o universo eterno

Diferentemente das tradições teístas, o Jainismo não reconhece um deus criador. O universo é eterno, incriado, sem começo nem fim, composto por duas categorias fundamentais:

  • Jiva (alma) – princípio consciente, presente em todos os seres;

  • Ajiva (não-alma) – matéria, tempo, espaço e outras substâncias inconscientes.

O objetivo do jainista é libertar o jiva da prisão do karma e do ciclo de renascimentos (samsara), por meio da purificação completa.

A cosmologia jainista é extremamente detalhada e descreve um universo tripartido com regiões celestiais, humanas e infernais. As almas circulam entre esses planos conforme suas ações.

Karma e ascetismo

No Jainismo, o karma não é apenas uma lei moral, mas uma substância sutil que se adere à alma sempre que há ação, pensamento ou emoção impura. Essa adesão prende o jiva ao mundo. A libertação só é possível por meio de:

  • Austeridade extrema (tapas) – incluindo jejum, silêncio, meditação prolongada;

  • Renúncia total – dos bens, do sexo, da violência, da mentira;

  • Autocontrole severo – mesmo sobre os pensamentos e intenções.

Os monges e monjas jainistas vivem sob regras extremamente estritas, enquanto os leigos seguem princípios adaptados, mas ainda rigorosos.

Duas correntes principais: Śvētāmbara e Digambara

Com o tempo, o Jainismo se dividiu em duas grandes escolas:

  • Śvētāmbara (“vestidos de branco”) – permitem roupas brancas aos monges e acreditam que mulheres também podem alcançar a liberação.

  • Digambara (“vestidos de céu”, ou seja, nus) – praticam o ascetismo nu, afirmam que a liberação só é possível no corpo masculino e enfatizam o rigor extremo.

Apesar das diferenças, ambas compartilham os mesmos princípios fundamentais e reverência pelos Tīrthaṅkaras.

Anekāntavāda: o pluralismo da verdade

Outro conceito sofisticado do Jainismo é o Anekāntavāda, ou “doutrina da multiplicidade de pontos de vista”. Nenhuma perspectiva humana é capaz de captar a verdade plena e absoluta, que é sempre complexa e multifacetada.

Esse pluralismo radical é ilustrado pela famosa parábola dos cegos e o elefante: cada cego toca uma parte do elefante e acredita que conhece o todo, mas todos estão parcialmente certos e parcialmente errados. O Jainismo, assim, sustenta que diversas visões podem coexistir sem contradição absoluta.

Jainismo na atualidade

Hoje, o Jainismo conta com cerca de 4 a 6 milhões de adeptos, sobretudo na Índia. Apesar de sua minoria numérica, sua influência cultural, ética e filosófica é desproporcional ao seu tamanho.

Os jainistas, tradicionalmente, se dedicam a atividades comerciais, filantrópicas e educativas. Muitos mantêm templos ricamente esculpidos e comunidades devocionais, como o famoso Templo de Ranakpur no Rajastão.

Há também jainistas na diáspora — nos EUA, Reino Unido, Quênia — que buscam manter a tradição em contextos seculares e modernos.

Conclusão: uma religião sem concessões

O Jainismo é um lembrete radical de que a libertação exige renúncia, atenção rigorosa aos efeitos de cada ação e uma ética profunda que vai muito além do “não fazer o mal”. Ele confronta tanto o ego humano quanto a arrogância epistêmica, propondo um caminho onde a humildade, o autocontrole e a compaixão são levados ao extremo.

Num mundo de violência normalizada, consumo inconsciente e certezas absolutas, a voz dos jainistas soa como um eco milenar — firme, difícil, mas inquietantemente lúcido.