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Samaritanismo: Os Guardiões Esquecidos da Torá

Uma Religião Entre a Antiguidade e a Resistência

O Samaritanismo é uma religião abraâmica independente, mas intimamente ligada às origens do judaísmo. Seus adeptos — os samaritanos — se consideram os herdeiros legítimos da tradição mosaica, descendentes diretos das tribos de Efraim e Manassés, habitantes da antiga Samaria. Rejeitados tanto pelo judaísmo rabínico quanto pelo cristianismo, os samaritanos preservaram por mais de dois milênios uma prática religiosa distinta, centrada exclusivamente na Torá Samaritana e na adoração ao Monte Gerizim.

Hoje, restam apenas cerca de 800 samaritanos vivos, divididos entre a cidade de Nablus (Siquém), na Cisjordânia, e a cidade israelense de Holon, próximo a Tel Aviv. Ainda assim, mantêm com rigor sua identidade religiosa, liturgia, idioma e tradição sacerdotal.

Origens: Cisma ou Continuidade?

A origem do Samaritanismo é um ponto de controvérsia histórica e teológica. Segundo a narrativa judaica (especialmente em 2 Reis e Esdras), os samaritanos teriam surgido após a conquista assíria do Reino do Norte (Israel) no século VIII a.C., como um povo mestiço — uma mistura de israelitas remanescentes e estrangeiros transplantados pelos assírios. Assim, seriam considerados heréticos e impuros.

No entanto, a visão samaritana é radicalmente diferente: eles afirmam que representam a continuidade pura e fiel do culto mosaico, enquanto os judeus, após o exílio babilônico, teriam alterado a fé original ao adotar práticas “babilônicas” e centralizar o culto no Monte Sião (Jerusalém) em vez do sagrado Monte Gerizim.

A disputa entre judeus e samaritanos já era explícita nos tempos do Segundo Templo e continua marcada até hoje. Para os samaritanos, o Gerizim é o verdadeiro lugar escolhido por Deus, onde Josué teria construído o primeiro altar, e onde o culto deve ser perpetuado.

A Torá Samaritana: Palavra Imutável

O cânone sagrado dos samaritanos é composto apenas pelos cinco livros da Torá (Pentateuco), em uma versão própria — o Texto Samaritano — que contém diferenças importantes em relação ao Texto Massorético (usado pelos judeus) e ao texto da Septuaginta (grego). O restante das escrituras hebraicas (Profetas, Escritos) é rejeitado pelos samaritanos.

A Torá Samaritana reforça a centralidade do Monte Gerizim como local de culto e expurga referências a Jerusalém. Está escrita em uma forma arcaica do hebraico, o chamado alfabeto paleo-hebraico, o qual preserva traços da escrita antiga antes da adoção do alfabeto quadrático judaico.

Práticas e Rituais

O culto samaritano é estritamente monoteísta, voltado para YHWH como o único Deus criador. Não há sinagogas no modelo judaico, mas casas de oração voltadas para o Gerizim. Suas práticas incluem:

  • Oração diária, voltada ao Gerizim.

  • Circuncisão no oitavo dia, como ordenado a Abraão.

  • Celebração das festas bíblicas (Pessach, Shavuot, Sukkot), com calendário próprio.

  • Sacrifício pascal anual, realizado com cordeiros no topo do Monte Gerizim — um dos poucos cultos sacrificiais ainda ativos no mundo.

  • Observância rígida do sábado, com proibições que lembram as mais antigas práticas sabáticas.

O sacerdócio samaritano é hereditário, descendente de Arão, irmão de Moisés. O Sumo Sacerdote (Kohen Gadol) é a maior autoridade espiritual e ritual da comunidade.

Crise de Sobrevivência

O Samaritanismo, embora seja uma das tradições religiosas mais antigas ainda praticadas, está em risco de extinção. Durante séculos, os samaritanos enfrentaram perseguições por parte de bizantinos, muçulmanos e até cruzados. A diáspora moderna, a pressão do conflito israelo-palestino e a exogamia ameaçam a continuidade da comunidade, que até poucas décadas atrás contava com menos de 150 pessoas.

Para preservar a linhagem, os samaritanos hoje adotam práticas como o casamento misto com mulheres judias convertidas ao Samaritanismo, um gesto controverso mas necessário para sua sobrevivência demográfica.

Uma Herança Esquecida

Estudar o Samaritanismo é mergulhar em um capítulo silenciado da história bíblica, que lança dúvidas sobre as narrativas dominantes do judaísmo rabínico. Os samaritanos carregam uma tradição viva que oferece uma janela única para os tempos do antigo Israel, antes das reformas centralizadoras e da construção do templo em Jerusalém.

Eles não são apenas uma curiosidade arqueológica viva, mas uma linha paralela da história religiosa abraâmica, que nos força a questionar: e se a religião de Moisés não foi aquela perpetuada em Jerusalém, mas no alto de um monte esquecido da Samaria?