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O xamanismo das estepes eurasiáticas é um dos sistemas espirituais mais antigos da humanidade — uma cosmologia viva que antecede as religiões organizadas e permanece como um fio subterrâneo que liga povos de vastas regiões: da Sibéria à Mongólia, do Cazaquistão à Manchúria. Trata-se de uma religiosidade sem templos, sem dogmas, mas com mundos inteiros a serem percorridos.
No coração dessa tradição está o xamã: aquele ou aquela que transita entre os mundos, que cura, que negocia com os espíritos, que vê o invisível e age sobre ele.
As vastas estepes da Eurásia, com seu céu aberto e suas planícies sem fim, moldaram uma espiritualidade centrada na interação com as forças da natureza, os espíritos ancestrais e os mundos não materiais.
O termo “xamã” deriva do tungúsico šaman (provavelmente via Evenki), mas expressa um fenômeno comum a muitos povos: turcos siberianos, mongóis, buriates, yakutos, chukchis, tuvanos e muitos outros. Cada cultura tem seu nome para o praticante, mas a função é essencialmente a mesma: mediador entre o mundo dos vivos e o mundo espiritual.
O xamanismo das estepes é marcado por uma cosmologia tripartida:
Mundo Superior – morada dos espíritos celestes, divindades e forças benevolentes.
Mundo Intermediário – o nosso mundo, habitado por humanos e por espíritos da natureza.
Mundo Inferior – reino dos mortos, das doenças, das forças caóticas ou perigosas.
O xamã, através de transe induzido por canto, tambor, dança ou uso de substâncias enteógenas, viaja entre esses mundos. Ele não faz isso por curiosidade: viaja para curar, buscar a alma perdida de um doente, interceder junto aos ancestrais, ou restaurar o equilíbrio entre humanos e espíritos.
O xamã não atua de forma improvisada: sua prática é ritualizada, performática e altamente simbólica.
Tambor (tüngür, tüyü): representa o cavalo ou renas que levam o xamã em sua jornada espiritual. Cada lado do tambor pode representar um mundo.
Roupas cerimoniais: adornadas com metais, espelhos, ossos, chifres ou penas. Muitas vezes simulam uma armadura, asas ou traços de animais — o xamã “se transforma”.
Máscaras ou pinturas faciais: ajudam na dissociação da identidade comum e na personificação espiritual.
O xamã não escolhe ser xamã — ele é escolhido. Muitas vezes, o chamado se manifesta por meio de doenças, visões, desmaios, febres ou crises existenciais. Esse “transtorno iniciático” é interpretado como a exigência de um espírito que quer agir por meio daquela pessoa.
A formação de um xamã envolve:
Aprendizagem com mestres experientes
Rituais de consagração
Domínio dos cantos e cosmologias locais
Contato pessoal com seus “espíritos auxiliares” ou animais de poder
No xamanismo das estepes, os espíritos não são bons ou maus em termos morais, mas forças com vontades próprias. Podem ser:
Espíritos da natureza: rios, montanhas, florestas.
Ancestrais tribais ou familiares.
Espíritos de doenças: que precisam ser combatidos, expulsos ou apaziguados.
Animais totêmicos e guias espirituais.
A habilidade do xamã reside em saber com quem falar, como negociar, como persuadir ou lutar. Não é apenas mediador, mas estrategista espiritual.
Nas sociedades das estepes, o xamã é curandeiro, psicólogo, conselheiro, vidente e sacerdote ao mesmo tempo. Muitas doenças eram (e são) vistas como resultados de desequilíbrios espirituais: alma sequestrada, ofensa a um espírito, influência de mortos insatisfeitos.
A cura envolve:
Rituais de purificação
Recuperação da alma perdida
Invocação dos espíritos auxiliares
Banimento ou pacificação de entidades nocivas
Não há separação entre corpo, mente e espírito. Tudo é interdependente.
Durante o período soviético, o xamanismo foi violentamente reprimido: xamãs foram perseguidos, acusados de charlatanismo ou mentalmente insanos, muitos foram mortos. Santuários destruídos, tambores queimados.
Apesar disso, muito da tradição sobreviveu de forma subterrânea, disfarçada ou transmitida oralmente. Com o colapso da URSS, houve um renascimento do xamanismo, especialmente na Sibéria, Mongólia e regiões turcomanas, muitas vezes em diálogo com o nacionalismo étnico e com movimentos espirituais globais.
Hoje, o xamanismo das estepes vive:
Como religião tradicional revitalizada
Como fonte de identidade cultural
Como sistema terapêutico alternativo
E, por vezes, como espetáculo turístico
O xamanismo das estepes não é um “ismo” no sentido ocidental. É uma prática viva de escuta do mundo invisível, de respeito aos ritmos da natureza, de cuidado espiritual da comunidade. Em tempos de crises existenciais e ambientais, essa tradição ancestral reaparece não como superstição do passado, mas como um lembrete inquietante de que o humano nunca esteve sozinho no universo.
Na vastidão da estepe, onde o céu toca o horizonte e o tambor ecoa como o trote de cavalos cósmicos, o xamã cavalga entre mundos — para lembrar que tudo está em relação.