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Entre o céu e a terra, a arte de viajar pelos mundos invisíveis

O xamanismo das estepes eurasiáticas é um dos sistemas espirituais mais antigos da humanidade — uma cosmologia viva que antecede as religiões organizadas e permanece como um fio subterrâneo que liga povos de vastas regiões: da Sibéria à Mongólia, do Cazaquistão à Manchúria. Trata-se de uma religiosidade sem templos, sem dogmas, mas com mundos inteiros a serem percorridos.

No coração dessa tradição está o xamã: aquele ou aquela que transita entre os mundos, que cura, que negocia com os espíritos, que vê o invisível e age sobre ele.

As raízes do xamanismo: a estepe como paisagem sagrada

As vastas estepes da Eurásia, com seu céu aberto e suas planícies sem fim, moldaram uma espiritualidade centrada na interação com as forças da natureza, os espíritos ancestrais e os mundos não materiais.

O termo “xamã” deriva do tungúsico šaman (provavelmente via Evenki), mas expressa um fenômeno comum a muitos povos: turcos siberianos, mongóis, buriates, yakutos, chukchis, tuvanos e muitos outros. Cada cultura tem seu nome para o praticante, mas a função é essencialmente a mesma: mediador entre o mundo dos vivos e o mundo espiritual.

Cosmovisão xamânica: múltiplos mundos, múltiplas forças

O xamanismo das estepes é marcado por uma cosmologia tripartida:

  1. Mundo Superior – morada dos espíritos celestes, divindades e forças benevolentes.

  2. Mundo Intermediário – o nosso mundo, habitado por humanos e por espíritos da natureza.

  3. Mundo Inferior – reino dos mortos, das doenças, das forças caóticas ou perigosas.

O xamã, através de transe induzido por canto, tambor, dança ou uso de substâncias enteógenas, viaja entre esses mundos. Ele não faz isso por curiosidade: viaja para curar, buscar a alma perdida de um doente, interceder junto aos ancestrais, ou restaurar o equilíbrio entre humanos e espíritos.

Os instrumentos do xamã: tambor, trajes e símbolos

O xamã não atua de forma improvisada: sua prática é ritualizada, performática e altamente simbólica.

  • Tambor (tüngür, tüyü): representa o cavalo ou renas que levam o xamã em sua jornada espiritual. Cada lado do tambor pode representar um mundo.

  • Roupas cerimoniais: adornadas com metais, espelhos, ossos, chifres ou penas. Muitas vezes simulam uma armadura, asas ou traços de animais — o xamã “se transforma”.

  • Máscaras ou pinturas faciais: ajudam na dissociação da identidade comum e na personificação espiritual.

Iniciação e vocação: o chamado do espírito

O xamã não escolhe ser xamã — ele é escolhido. Muitas vezes, o chamado se manifesta por meio de doenças, visões, desmaios, febres ou crises existenciais. Esse “transtorno iniciático” é interpretado como a exigência de um espírito que quer agir por meio daquela pessoa.

A formação de um xamã envolve:

  • Aprendizagem com mestres experientes

  • Rituais de consagração

  • Domínio dos cantos e cosmologias locais

  • Contato pessoal com seus “espíritos auxiliares” ou animais de poder

Espíritos e forças: nem bons, nem maus

No xamanismo das estepes, os espíritos não são bons ou maus em termos morais, mas forças com vontades próprias. Podem ser:

  • Espíritos da natureza: rios, montanhas, florestas.

  • Ancestrais tribais ou familiares.

  • Espíritos de doenças: que precisam ser combatidos, expulsos ou apaziguados.

  • Animais totêmicos e guias espirituais.

A habilidade do xamã reside em saber com quem falar, como negociar, como persuadir ou lutar. Não é apenas mediador, mas estrategista espiritual.

Entre medicina e espiritualidade

Nas sociedades das estepes, o xamã é curandeiro, psicólogo, conselheiro, vidente e sacerdote ao mesmo tempo. Muitas doenças eram (e são) vistas como resultados de desequilíbrios espirituais: alma sequestrada, ofensa a um espírito, influência de mortos insatisfeitos.

A cura envolve:

  • Rituais de purificação

  • Recuperação da alma perdida

  • Invocação dos espíritos auxiliares

  • Banimento ou pacificação de entidades nocivas

 

Não há separação entre corpo, mente e espírito. Tudo é interdependente.

Perseguição, sincretismo e sobrevivência

Durante o período soviético, o xamanismo foi violentamente reprimido: xamãs foram perseguidos, acusados de charlatanismo ou mentalmente insanos, muitos foram mortos. Santuários destruídos, tambores queimados.

Apesar disso, muito da tradição sobreviveu de forma subterrânea, disfarçada ou transmitida oralmente. Com o colapso da URSS, houve um renascimento do xamanismo, especialmente na Sibéria, Mongólia e regiões turcomanas, muitas vezes em diálogo com o nacionalismo étnico e com movimentos espirituais globais.

Hoje, o xamanismo das estepes vive:

  • Como religião tradicional revitalizada

  • Como fonte de identidade cultural

  • Como sistema terapêutico alternativo

  • E, por vezes, como espetáculo turístico

Conclusão: o xamã como ponte viva

O xamanismo das estepes não é um “ismo” no sentido ocidental. É uma prática viva de escuta do mundo invisível, de respeito aos ritmos da natureza, de cuidado espiritual da comunidade. Em tempos de crises existenciais e ambientais, essa tradição ancestral reaparece não como superstição do passado, mas como um lembrete inquietante de que o humano nunca esteve sozinho no universo.

Na vastidão da estepe, onde o céu toca o horizonte e o tambor ecoa como o trote de cavalos cósmicos, o xamã cavalga entre mundos — para lembrar que tudo está em relação.