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No coração da Amazônia, longe dos concílios teológicos da Europa e dos dogmas consolidados da cristandade, brotou uma forma de religiosidade que mistura catecismo com cipó, hinos com visões, doutrina com alucinação. Estamos falando do Santo Daime e da União do Vegetal (UDV) — dois movimentos brasileiros que se organizaram em torno do uso ritual da ayahuasca, uma bebida enteógena com origem indígena.
Mais do que religiões, são experiências vivas onde o sagrado se manifesta não através de livros, mas de visões, cantos e estados alterados de consciência. Mas seriam essas manifestações um caminho legítimo de contato com o divino, ou apenas interpretações simbólicas sob o efeito de substâncias psicotrópicas? A resposta divide cientistas, juristas, fiéis e críticos até hoje.
A ayahuasca — ou “o cipó dos espíritos”, como a conhecem os povos indígenas — é uma bebida feita a partir da combinação de duas plantas amazônicas: o cipó Banisteriopsis caapi e as folhas da Psychotria viridis. Sozinhas, são inofensivas. Juntas, produzem uma potente substância psicoativa: a DMT.
Para os xamãs indígenas, a ayahuasca é uma ferramenta de cura, orientação espiritual e contato com outras dimensões. Mas, a partir do século XX, ela ganha um novo papel nas mãos de mestres sincréticos cristãos.
O Santo Daime foi fundado por Raimundo Irineu Serra, conhecido como Mestre Irineu, um ex-seringueiro maranhense radicado no Acre. Após consumir ayahuasca com indígenas, teria recebido visões da “Rainha da Floresta” — uma manifestação mariana — e, sob sua orientação espiritual, fundou uma nova doutrina, unindo catolicismo popular, esoterismo cristão, simbolismo maçônico, espiritismo e elementos indígenas.
O Daime é profundamente estruturado em rituais coreografados com música (os “hinos”), vestimentas padronizadas, uma moral rígida e uma hierarquia iniciática. O culto é muitas vezes realizado em círculos ou filas dançantes, com longas sessões de consumo da bebida, alternando introspecção e catarse coletiva.
Apesar da aparente liberdade psicodélica, há forte controle comportamental dentro da doutrina, o que a torna mais disciplinada do que muitos imaginam.
A UDV foi fundada por José Gabriel da Costa, o “Mestre Gabriel”, também no contexto amazônico, nos anos 1960. Diferente do Santo Daime, a UDV assume uma estrutura mais racionalizada e institucionalizada, com uma abordagem quase empresarial da espiritualidade.
O culto da UDV é mais sóbrio: não há danças ou longas sessões musicais, mas estudos, reflexões e consumo do “vegetal” (ayahuasca) em ambiente formal. A bebida é vista como sacramento para o autoconhecimento e crescimento moral.
A UDV teve êxito em se projetar para além da floresta, conquistando apoio de intelectuais, médicos, advogados e até militares. Sua organização interna é marcada por um sistema de graus e hierarquias, que aproxima a instituição de uma ordem iniciática moderna.
Ambos os grupos enfrentaram, e ainda enfrentam, desafios legais quanto ao uso da ayahuasca, classificada em diversos países como substância controlada. No entanto, o Brasil reconhece oficialmente o uso religioso da bebida desde 2010, após longas batalhas judiciais e estudos promovidos pelo CONAD (Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas).
O debate gira em torno de uma questão-chave: é possível distinguir experiência religiosa autêntica de efeito psicoativo? A resposta, claro, depende da lente usada — teológica, neurológica, jurídica ou filosófica.
Nos Estados Unidos e na Europa, tanto a UDV quanto o Santo Daime têm filiais ativas, operando sob decisões judiciais que reconhecem seu direito ao uso sacramental da ayahuasca. Ainda assim, os entraves culturais e legais são constantes.
As religiões ayahuasqueiras caminham na corda bamba entre o delírio e o sagrado. Por um lado, seus adeptos relatam cura de vícios, superação de traumas, contato com entidades benevolentes e experiências místicas profundas. Por outro, críticos apontam o risco de manipulação psicológica, dependência da comunidade, e os perigos da autossugestão sob o efeito de substâncias potentes.
Apesar disso, o elemento vivencial, tão ausente nas religiões dogmáticas, é o que atrai muitos ao Santo Daime e à UDV. Não se trata de acreditar por tradição, mas de ver, sentir e experimentar o sagrado — ainda que sob o olhar alterado da mente expandida.
O Santo Daime e a UDV são expressões brasileiras de um espiritualismo contemporâneo, que não teme cruzar fronteiras entre ciência, religião, medicina e psicodelia. Representam um retorno à experiência direta do sagrado, numa época em que dogmas envelhecem e a busca por sentido ganha novos contornos.
Na escuridão da floresta, à luz de velas, entoando hinos ou em silêncio meditativo, seus adeptos buscam mais do que explicações: buscam transformação. Se ela vem dos céus ou do cipó, essa é uma questão que continuará intrigando tanto místicos quanto céticos.