Portal do Aluno
Antes que houvesse igrejas, templos ou escrituras sagradas, o sagrado já se manifestava na floresta, no corpo do doente, no canto dos animais e no sopro do vento. A pajelança é uma dessas formas de espiritualidade originária que, ao contrário das religiões institucionalizadas, não separa natureza e transcendência, nem corpo e espírito.
Mas o que exatamente é a pajelança? Seria um xamanismo indígena tupinambá? Um sistema médico-espiritual baseado em ervas e orações? Uma religião propriamente dita? Ou seria tudo isso ao mesmo tempo?
A resposta exige atenção e cuidado. A pajelança é menos uma “doutrina” e mais uma teia de práticas de cura, comunicação espiritual e saber tradicional, cujas raízes estão entre os povos indígenas do Brasil, mas que se espalhou e se transformou com o tempo, incorporando elementos africanos, católicos e caboclos.
O termo “pajé” designa o curador espiritual das comunidades indígenas brasileiras. Não se trata apenas de um “xamã”, como se costuma rotular de forma simplista. O pajé é um mediador entre mundos: conversa com os espíritos, acalma a alma dos vivos, conduz rituais de cura e lida com forças que nem sempre são benevolentes.
O conhecimento do pajé não é escrito nem acadêmico: é oral, empírico, simbólico, ritualístico e profundamente conectado à floresta. O saber passa por sonhos, visões, observação dos ciclos naturais e ensinamentos dos mais velhos.
Em um mundo que fetichiza o progresso tecnológico, a figura do pajé permanece como um lembrete de que nem todo saber é mensurável, nem toda cura é química.
A cura tradicional realizada pelos pajés envolve um repertório complexo: ervas medicinais, cantos sagrados (muitas vezes em línguas indígenas), fumos, sopros, banhos, defumações, danças e invocações de entidades espirituais. Cada elemento tem função específica e simbólica.
A doença, dentro dessa cosmovisão, não é apenas física: é também energética, espiritual, social. Uma dor pode ser causada por um espírito perturbado, um feitiço, um desequilíbrio com a natureza ou uma falta de respeito com os ancestrais.
Muitas vezes, a cura exige mais do que um remédio — exige reintegração da pessoa ao seu entorno, à comunidade, ao mundo espiritual e à própria natureza.
Com o processo de colonização, expulsão territorial e conversão forçada, muitas práticas indígenas foram reprimidas. Mas a pajelança não desapareceu — ela se reinventou. Misturou-se com elementos católicos (santos, rezas, terços), com espiritualidade africana e com a religiosidade popular brasileira.
É dessa fusão que surge o que se chama de “pajelança cabocla”, encontrada especialmente na região Norte e Nordeste do Brasil. Nela, entidades como caboclos, encantados e pretos-velhos são incorporadas em rituais que lembram práticas de umbanda, mas com raízes e estrutura muito mais ligadas à terra e à floresta.
Essa pajelança híbrida não apenas sobreviveu: ela criou novos caminhos de fé, cura e identidade cultural para milhões de pessoas invisibilizadas pela religião oficial.
Durante séculos, pajés e curandeiros foram perseguidos como bruxos, feiticeiros, charlatães ou adoradores do diabo — seja pela Inquisição, pela medicina ocidental ou pelas igrejas evangélicas contemporâneas.
Até hoje, a prática da pajelança ainda sofre preconceito, sendo muitas vezes reduzida a “crendice popular” ou “superstição indígena”. No entanto, estudiosos de antropologia, etnobotânica e saúde mental vêm reconhecendo o valor terapêutico, simbólico e comunitário dessas práticas.
A Organização Mundial da Saúde já defendeu, em documentos oficiais, o reconhecimento das medicinas tradicionais e integrativas, entre as quais a pajelança é um exemplo potente e original.
A pajelança é uma resposta antiga às dores humanas — e não apenas às físicas. Ela fala de um mundo onde tudo está vivo e interligado, onde não há separação entre planta e espírito, corpo e cosmos.
Mas há uma questão incômoda: como preservar esse saber sem destruí-lo pelo olhar colonizador? Como reconhecer sua sabedoria sem folclorizá-lo? Como abrir espaço para sua prática sem domesticá-la em linguagem acadêmica ou jurídica?
São perguntas urgentes, especialmente num país onde o genocídio cultural indígena ainda está em curso.
A pajelança é mais do que uma prática religiosa ou de cura: é um modo de existir e de interpretar o mundo. Suas raízes estão no Brasil profundo, onde a floresta ainda fala, e os espíritos ainda caminham entre os vivos.
Num tempo em que se busca cura em pílulas, diagnósticos digitais e gurus estrangeiros, a pajelança lembra que talvez a sabedoria que procuramos já esteja aqui — em nossas matas, em nossos ancestrais e nos cantos esquecidos do Brasil real.