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No coração do Norte do Brasil, o Maranhão abriga um dos sistemas espirituais mais fascinantes e menos compreendidos do país: a Encantaria Maranhense. Trata-se de um universo religioso que não cabe em definições ocidentais clássicas. Não é candomblé, não é umbanda, não é espiritismo — e ao mesmo tempo, toca cada um desses universos, subvertendo-os com sua lógica própria.
A Encantaria não é apenas um culto: é um modo de relacionamento com o invisível, onde a floresta, os rios e os mares abrigam reis e rainhas espirituais, caboclos e índios encantados, príncipes de reinos desconhecidos e entidades que nunca morreram — apenas encantaram-se.
A Encantaria Maranhense é um complexo religioso de origem afro-indígena-cabocla, profundamente enraizado nas tradições populares do Maranhão e presente também no Pará e no Piauí. É uma forma única de religiosidade onde se cultuam os Encantados — entidades espirituais que, segundo a tradição, não morreram, mas passaram a viver em reinos invisíveis como o Encantado das Matas, das Águas, das Pedreiras e dos Céus.
Não se trata de um sistema organizado ou codificado, mas de uma espiritualidade viva, fluida, moldada pelas casas, pelos mestres e pelos reinos com os quais se trabalha.
A Encantaria nasceu do encontro — muitas vezes violento — entre os povos indígenas, os negros escravizados e os colonos portugueses. No Maranhão do século XVII, com seus quilombos, missões jesuíticas e aldeamentos indígenas, formou-se um ambiente fértil para o nascimento de cosmologias híbridas, onde o sagrado se manifestava com rostos múltiplos.
Os encantados são herdeiros desse cruzamento cultural. Em sua galeria, encontramos:
Índios e índias encantadas (como a Princesa Bárbara Soeira)
Negros e negras de realeza espiritual (como Rei Congo)
Portugueses e figuras da nobreza europeia (como Dom Luís e Rei Sebastião)
Caboclos, marinheiros, vaqueiros, ciganos, mouros e até cavaleiros templários
Essa diversidade mostra o quanto a Encantaria é uma expressão de resistência simbólica, onde o mundo espiritual reelabora a história com seus próprios códigos.
O elemento central da Encantaria são os Encantados — seres espirituais que vivem em planos paralelos chamados Reinos ou Linhas de Encantaria. Eles não são espíritos de mortos comuns, mas seres que foram “absorvidos” pelos mistérios da natureza, vivendo em estado de encantamento.
Entre os Encantados mais cultuados estão:
Caboclo da Mata
Caboclo Pena Branca
Dom Luís, Dom Sebastião e Dom Manuel
Princesa Diana e Princesa Bárbara
Rei Sebastião – associado à ilha encantada dos Lençóis Maranhenses
Caboclo Tupinambá e índia Catarina Paraguaçu
Rei Congo, Rei Malunguinho, Rainha Ginga
Muitos deles são figuras mitológicas com fortes raízes históricas, sincretizadas com santos ou personagens da realeza europeia, reinterpretados como entidades espirituais libertadoras.
A Encantaria organiza-se em Reinos Espirituais, cada um com sua estética, ética e rituais próprios. Esses Reinos não são simbólicos — são considerados locais reais no plano espiritual, acessados durante o transe ou revelações.
Entre os mais importantes:
Reino da Mata: habitado por caboclos, caçadores, guerreiros, protetores das florestas.
Reino das Águas: de marinheiros, sereias, encantados dos rios e do mar.
Reino das Pedreiras: associado à força, ao trabalho e à resistência.
Reino dos Mouros: com cavaleiros, reis medievais e figuras ibéricas encantadas.
Reino dos Ciganos: ligados à magia, movimento, música e liberdade.
Reino de Juremeiros: ponto de contato com a Jurema Sagrada.
Cada casa de Encantaria (também chamada de Casa de Encantado ou Tenda de Encantaria) trabalha com certas linhas, conforme a tradição recebida por seus mestres ou mães/pais de santo.
Os rituais da Encantaria são marcados por:
Tambores (curimbas), com ritmos próprios para cada Reino.
Cantigas que “chamam” os encantados e criam a ambiência espiritual.
Transe e incorporação, onde o médium cede o corpo para a presença do Encantado.
Banhos, defumações, oferendas e trabalhos espirituais.
Vestimentas específicas, conforme o Reino do encantado: fardas, saias, armaduras, mantos.
É comum que os encantados falem, cantem, bebam, aconselhem e dancem, mantendo uma personalidade viva e independente do médium.
A Encantaria não possui um livro sagrado, nem dogmas fixos. O conhecimento é oral e ritualístico, passado entre gerações dentro de famílias espirituais.
A Encantaria dialoga com diversas tradições:
Catolicismo popular: muitos Encantados são sincretizados com santos (como Dom Luís com São Luís).
Religiões africanas: a presença de encantados como Rei Congo ou Rainha Ginga evoca uma herança banto.
Jurema Sagrada: compartilha a lógica dos reinos e dos seres não-mortos.
Espiritismo: há práticas de cura, desobsessão e comunicação espiritual.
Umbanda e Tambor de Mina: em muitos terreiros, há cruzamentos rituais e hierarquias paralelas.
Mas a Encantaria mantém sua autonomia simbólica e cosmológica. Seu universo não pode ser reduzido aos moldes das religiões afro-brasileiras tradicionais.
Durante décadas, a Encantaria foi marginalizada, criminalizada e ignorada por religiosos, pelo Estado e até pela academia. Associada à feitiçaria e à ignorância, foi praticada nos quintais, nas periferias e nas zonas rurais do Maranhão.
Hoje, ela vive um processo de renascimento e valorização cultural, com:
Casarões históricos se tornando casas de encantados.
Pesquisadores dando visibilidade à tradição.
Jovens retomando seus vínculos espirituais e familiares com os Reinos.
Espaços digitais e festivais locais difundindo a força da Encantaria.
A Encantaria não se orienta por noções de pecado ou salvação. Sua lógica gira em torno de três eixos:
Justiça espiritual: os encantados corrigem desequilíbrios, punem abusos e protegem os vulneráveis.
Honra e hierarquia: os Reinos têm reis, príncipes e generais. Tudo se faz com respeito e deferência.
Equilíbrio com a natureza: os encantados vivem em florestas, mares, serras. O humano deve escutar e obedecer os sinais do mundo natural.
A Encantaria Maranhense não é uma relíquia exótica — é um modo pulsante de religiosidade brasileira, profundamente vinculado ao povo, ao chão e à história.
É o culto do invisível que não precisa de teologia, mas de tambor, corpo e palavra viva.
“Reino Encantado não se vê com os olhos do corpo.
Vê-se com a alma de quem já ouviu o chamado do tambor.”
Se o Brasil é terra de cruzamentos, a Encantaria é a sua espiritualidade mais poética — um lugar onde reis vivem nas matas, caboclas dançam nos ventos e Deus fala em voz de encantado.