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O Trono, os Espíritos e os Antepassados: O Sagrado Invisível da Nação Ashanti

Antes de cruzadas missionárias, da colonização europeia e da globalização religiosa, os povos da África Ocidental já haviam desenvolvido sistemas espirituais sofisticados — complexos não por excesso de deuses, mas por profundidade simbólica.
A religião dos ashanti, na atual região central de Gana, é um desses sistemas: uma estrutura viva que atravessa os reinos da natureza, da ancestralidade, da política e do espírito.

Na cosmologia ashanti, o mundo não é dividido entre matéria e espírito, como na tradição ocidental. Tudo está imerso num campo de energia vital onde o invisível é a base do visível.

Os Ashanti: muito além do ouro e da guerra

O povo ashanti (ou asante) é parte do grande grupo acro-ocidental e tem como língua o twi.
Entre os séculos XVII e XIX, os ashanti construíram um dos maiores reinos africanos da história, com um sistema político centralizado, economia baseada no comércio (inclusive de ouro e escravos) e uma estrutura religiosa profundamente enraizada na vida cotidiana.

Para os ashanti, política e religião são inseparáveis. O trono é espiritual. O rei (ou Asantehene) não governa apenas corpos — ele rege almas.

Nyame: o criador que se retira

No centro da teologia ashanti está Nyame, o Deus supremo. Criador do universo, Nyame é transcendente, inalcançável e silencioso. Não se dirige orações a ele diretamente.
Ele criou o mundo e, como muitos deuses africanos supremos, recolheu-se — deixando o mundo aos cuidados de entidades intermediárias: os abosom.

Essa “ausência divina” é uma constante em muitas cosmologias africanas. É como se a divindade maior confiasse nos humanos e nos espíritos locais para manter o equilíbrio do mundo.

Abosom: os deuses que vivem na natureza

Os abosom são os espíritos da natureza e das forças cósmicas. Cada um está associado a um elemento, região ou função vital — e é cultuado com rituais específicos.

Alguns abosom importantes incluem:

  • Tano – espírito do rio Tano; associado à fertilidade, cura e proteção.

  • Bosomtwe – espírito do lago Bosomtwe, uma das entidades mais sagradas para os ashanti.

  • Asaase Yaa – deusa da terra, da agricultura, da morte e da regeneração.

Os abosom habitam árvores, pedras, fontes, montanhas — e, em muitos casos, são invocados em altares locais ou templos dedicados. Eles são os intermediários entre Nyame e os humanos.

Os Nananom Nsamanfo: ancestrais que nunca morrem

O culto aos antepassados é central na espiritualidade ashanti.
Os nananom nsamanfo (ancestrais veneráveis) são espíritos dos mortos que continuam a influenciar os vivos, protegendo-os ou punindo-os conforme seu comportamento.

Esses ancestrais são honrados com oferendas, libações e rituais regulares, especialmente nos ritos de passagem e nas decisões importantes.
Cada família possui seus próprios altares ancestrais, seus espíritos tutelares e suas narrativas genealógicas sagradas.

A morte, para os ashanti, não é o fim da vida, mas o início de uma nova forma de existência — uma forma mais livre, mais poderosa e mais exigente.

O Trono Dourado (Sika Dwa Kofi): símbolo do sagrado político

A religião ashanti não está separada da política — ela é política.

O símbolo máximo dessa união é o Trono Dourado (Sika Dwa Kofi), que, segundo a tradição, desceu dos céus nas mãos do sacerdote Okomfo Anokye no século XVII, unificando os clãs sob um só rei espiritual.

Esse trono não é um objeto físico comum: ele não deve tocar o chão, ninguém pode se sentar nele — nem mesmo o rei.
Ele representa a alma do povo ashanti, a presença dos ancestrais e a legitimidade do poder real.

Atacar o trono é atacar toda a nação.

Rituais, sacerdotes e adivinhação

A vida religiosa ashanti é composta por:

  • Rituais familiares: realizados nos lares, voltados aos ancestrais.

  • Rituais comunitários: envolvendo os abosom, com danças, tambores e oferendas.

  • Festivais públicos, como o Adae, celebrando os ancestrais e a realeza.

O contato com o mundo invisível é feito por meio dos akomfo (sacerdotes e sacerdotisas), que podem entrar em transe, oferecer sacrifícios ou consultar oráculos.

A adivinhação (normalmente feita com cascas, pedras ou osso de animais) é essencial para saber a vontade dos espíritos antes de qualquer ação relevante — do plantio ao casamento, da guerra à cura.

Moralidade e ordem espiritual

A ética ashanti é uma moral de equilíbrio.
Fazer o bem é manter a harmonia com os ancestrais, os abosom e a comunidade.
Os pecados não são apenas morais, mas espirituais — e causam desequilíbrio, podendo resultar em doenças, infertilidade, colheitas ruins ou morte prematura.

Rituais de purificação, reconciliação e sacrifícios são utilizados para restaurar essa ordem.

Cristianismo, sincretismo e resistência

Com a chegada dos colonizadores britânicos, a religião ashanti foi violentamente suprimida. Igrejas substituíram templos, missionários queimaram santuários e demonizaram os abosom como “ídolos pagãos”.

Ainda assim, a religiosidade tradicional sobreviveu camuflada — muitas vezes em rituais familiares ou festivais reinterpretados.

Hoje, muitos ashanti são cristãos que ainda reverenciam os ancestrais, consultam sacerdotes tradicionais e participam de ritos espirituais.
Essa convivência entre fé cristã e religiosidade ancestral não é contradição — é continuidade cultural.

Por que estudar a religião ashanti?

Porque ela nos obriga a pensar o sagrado como uma teia de relações entre o mundo dos vivos, dos mortos e dos deuses — não como um dogma, mas como uma dança.

Estudar os ashanti é compreender que espiritualidade pode estar na terra, na política, na família e nos rios.
É ver como uma nação inteira construiu um sistema espiritual que resiste, renasce e se reinventa diante da história.

Continue sua jornada

Explore outras tradições africanas conectadas à religiosidade ashanti:

  • O Vodun do Benim e Togo

  • A tradição Akan (grupo cultural mais amplo do qual os ashanti fazem parte)

  • O Candomblé no Brasil (influenciado por culturas akan)

  • O culto aos ancestrais em diversas religiões africanas