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Religiões Tradicionais dos Pampas e Andes Meridionais

Quando se fala em religiosidade indígena no Cone Sul da América Latina — particularmente nas regiões dos Pampas, Patagônia e Andes meridionais — é preciso abandonar as ideias pré-fabricadas sobre sistemas religiosos centrados em templos, teologias escritas ou divindades hierarquizadas. Nessas vastas e diversas geografias habitaram povos cuja espiritualidade brotava da terra, do vento e da memória dos ancestrais. Suas cosmologias, embora profundamente enraizadas na vida cotidiana, foram sistematicamente negligenciadas tanto pela historiografia oficial quanto pela colonização religiosa europeia.

Povos e territórios

Os principais grupos envolvidos são os Mapuche (Chile e Argentina), os Tehuelche (Patagônia), os Selk’nam (Tierra del Fuego), os Yámana (canoeiros austrais), os Qulla (Andes bolivianos e argentinos), os Diaguitas (noroeste argentino e norte do Chile), entre outros. Cada um desses povos desenvolveu práticas espirituais distintas, adaptadas ao seu ambiente: as vastas planícies pampianas, as montanhas escarpadas dos Andes, ou os ventos gelados da Terra do Fogo.

Cosmovisão e natureza

A religiosidade desses povos é inseparável da natureza. O universo é concebido como uma totalidade viva, onde espíritos habitam montanhas, rios, animais e até fenômenos climáticos. Entre os Mapuche, por exemplo, o mundo é dividido entre forças complementares — como o mundo de arriba (wenu mapu) e o mundo de abaixo (minche mapu) — e a harmonia entre essas dimensões é mantida por rituais conduzidos por figuras espirituais como a machi, uma espécie de xamã que atua como curadora, médium e guardiã da ordem cósmica.

Culto aos ancestrais e à terra

O culto aos ancestrais é central. Os mortos não se vão: permanecem presentes, orientando, protegendo ou, se esquecidos, trazendo desequilíbrios. Muitos rituais têm como função honrar esses espíritos, restaurar a harmonia da comunidade e garantir boas colheitas, saúde ou proteção contra infortúnios. A Pachamama — Mãe Terra — é uma das figuras mais abrangentes no imaginário espiritual dos povos andinos, reverenciada através de oferendas como folhas de coca, alimentos, bebidas e até sacrifícios rituais.

Rituais, símbolos e práticas

As práticas religiosas incluem danças, cantos, jejuns, oferendas e estados alterados de consciência induzidos por cantos rítmicos ou ingestão de plantas sagradas. A machitún (ritual de cura) entre os Mapuche, por exemplo, é um complexo rito que envolve instrumentos musicais, invocação de espíritos e processos de purificação.

Entre os Selk’nam, o Hain era uma cerimônia de iniciação com profundo significado cósmico e social, em que os jovens passavam por provas que simbolizavam a morte e o renascimento — um teatro espiritual encenado pelos anciãos com máscaras e mitologias ancestrais. Já entre os Diaguitas e Qulla, há resquícios de astronomia ritual, culto aos astros e alinhamentos sagrados com montanhas e constelações.

Perseguição, resiliência e renascença

A colonização espanhola tentou destruir essas tradições: demonizou os rituais, destruiu símbolos e impôs a catequese. No entanto, as práticas sobreviveram, muitas vezes camufladas sob formas cristãs — sincretismos que se vêem ainda hoje em festas populares, devoções a santos que ocultam antigos espíritos tutelares e em ritos camponeses que misturam missa com oferendas à terra.

Atualmente, há um movimento crescente de recuperação identitária. Povos Mapuche, Qulla e Diaguita vêm reivindicando suas práticas espirituais como parte vital de sua cultura, resistência política e cosmovisão. A espiritualidade tornou-se também um ponto de encontro com movimentos ecológicos e cosmologias alternativas ao paradigma ocidental.