Lábios da Sabedoria

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O Legado Esquecido do Judaísmo Ibérico

A Religião Forjada na Dor, na Resistência e na Transcendência

Quando falamos de judaísmo, os holofotes costumam se voltar quase sempre aos Ashkenazi, protagonistas do imaginário judaico moderno ocidental. No entanto, há uma outra corrente igualmente poderosa, rica e muitas vezes negligenciada: os Sefarditas, os judeus originários da Península Ibérica, cujas raízes mergulham profundamente nas civilizações de Al-Andalus e dos reinos cristãos da Espanha e de Portugal medievais.

O termo “Sefarad” aparece já na Bíblia (Obadias 1:20) e, ao longo dos séculos, passou a designar as terras ibéricas. Os Sefarditas não são apenas uma etnia judaica — são portadores de uma tradição mística, filosófica, jurídica e poética que influenciou profundamente o judaísmo como um todo, mesmo após sua expulsão traumática da Península.

Al-Andalus: O Florescimento da Cultura Judaico-Sefardita

Durante o domínio muçulmano na Península Ibérica (séculos VIII a XV), os judeus sefarditas viveram, por um período, sob relativa tolerância, convivendo com muçulmanos e cristãos. Essa convivência — embora nem sempre pacífica — criou um ambiente cultural singular, onde a filosofia grega foi redescoberta, a poesia hebraica floresceu e a mística judaica começou a assumir formas mais sistematizadas.

Grandes nomes emergiram nesse período:

  • Maimônides (Rambam): filósofo, médico e codificador da lei judaica, cuja obra Guia dos Perplexos tentou conciliar razão aristotélica e fé mosaica.

  • Yehuda Halevi: poeta e pensador cuja lírica ainda ecoa nos rituais.

  • Hasdai ibn Shaprut e Samuel Ha-Nagid: figuras políticas que ocuparam cargos de destaque sob governos muçulmanos.

A língua judeu-espanhol (ladino) floresceu, criando uma ponte entre a cultura ibérica e a tradição hebraica. A liturgia, a música, os costumes e até a culinária sefardita trazem traços desse passado híbrido — uma mescla entre Oriente e Ocidente, fé mosaica e influência andaluza.

A Expulsão de 1492 e o Trauma da Diáspora

O ano de 1492, tão celebrado pela cristandade espanhola, é uma data catastrófica para o judaísmo sefardita. Com a assinatura do Édito de Expulsão dos Reis Católicos, os judeus foram forçados a se converter ao cristianismo ou abandonar o reino. Muitos se converteram à força, tornando-se os chamados “conversos” ou “cristãos-novos”, frequentemente vigiados e perseguidos pela Inquisição. Outros fugiram — para o Norte da África, Império Otomano, Balcãs, Holanda e Américas.

Essa diáspora fragmentou a comunidade sefardita, mas não a destruiu. Em seus novos refúgios, os sefarditas reconstruíram sinagogas, escolas, tipografias e centros de estudo, mantendo viva a liturgia, o ladino e os costumes ibéricos.

No Império Otomano, por exemplo, os sefarditas eram chamados de “os judeus do rei de Espanha” — e frequentemente recebidos com honra. Istambul, Salônica, Esmirna e Sarajevo tornaram-se novos centros do judaísmo sefardita. Em Amsterdã, uma comunidade intelectual floresceu, produzindo figuras como Baruch Spinoza — que, embora excomungado, é herdeiro dessa tensão entre tradição e racionalidade ibérica.

A Espiritualidade Sefardita: Razão, Lei e Mística

A religiosidade sefardita é marcada por uma tentativa de equilíbrio entre razão e mística. Ao contrário da tradição ashkenazi, que frequentemente polarizou essas tendências, os sefarditas integraram a racionalidade filosófica (sob influência grega e árabe) com uma profunda tradição mística — especialmente a Cabala de Safed, no século XVI.

O pensamento jurídico sefardita é, em geral, mais pragmático e sistemático. A codificação da halachá (lei judaica), por Maimônides e mais tarde por Yosef Karo (Shulchan Aruch), reflete essa tradição de clareza e organização, que contrasta com o estilo dialético e disperso do Talmude babilônico tal como lido pelos ashkenazim.

Na liturgia, os cânticos são ornamentados, de timbre mediterrâneo, e a musicalidade das rezas acompanha uma estética mais próxima do Islã e do cristianismo oriental do que da Europa cristã medieval.

O Silêncio dos “Cristãos-Novos” e a Resistência Oculta

Uma das facetas mais sombrias da história sefardita é o fenômeno dos anusim — judeus forçados à conversão, que praticavam sua fé em segredo. No Brasil colonial, em Portugal, na Espanha e nas colônias espanholas, muitos cristãos-novos preservaram práticas judaicas em silêncio: o acendimento das velas de Shabat, a abstenção de carne de porco, orações em voz baixa…

Esses fragmentos de fé escondida atravessaram séculos, sendo redescobertos por pesquisadores e comunidades que hoje, em vários lugares da América Latina, reivindicam uma identidade sefardita apagada pela violência inquisitorial.

O Presente: Memória, Renascimento e Reconhecimento

Hoje, os sefarditas representam uma minoria dentro do mundo judaico, mas sua herança é imensa. Há movimentos de resgate do ladino, projetos de reconhecimento de cidadania para descendentes de judeus expulsos de Portugal e Espanha, e uma renovada valorização da música, liturgia e sabedoria rabínica sefardita.

Enquanto o judaísmo ocidental moderno se universalizou com referências ashkenazi, a tradição sefardita ressurge como uma memória viva, uma alternativa ao judaísmo europeu dominante — mais solar, mais integradora, mais fluida, mas igualmente profunda e sofisticada.

Entre a Luz de Al-Andalus e as Sombras da Inquisição

Os sefarditas representam o melhor e o pior da experiência judaica na diáspora: a capacidade de coexistência, a fecundidade cultural e a brutal repressão. Eles nos lembram que espiritualidade não é apenas dogma, mas também música, poesia, filosofia e resistência silenciosa.

Preservar a memória sefardita é uma tarefa não apenas dos judeus, mas de toda a humanidade que deseja compreender como a fé sobrevive à espada, e como a cultura pode florescer mesmo sob o peso da intolerância.