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Trácios, Citas, Etruscos e Bascos — Ecos do sagrado que precedeu os impérios

Antes de Roma, antes da Grécia clássica e muito antes do Cristianismo ou do Islã, existiam culturas que viam o mundo como um lugar encantado, onde deuses cavalgavam pelos céus, espíritos habitavam os ossos dos mortos e colinas guardavam mistérios. As religiões dos trácios, citas, etruscos e bascos pertencem a esse tempo: um tempo anterior à teologia sistemática, mas não ao sagrado.

Este texto reconstrói essas espiritualidades com o máximo de fidelidade possível, reconhecendo seus limites, suas sombras e seus ecos ainda audíveis.

Trácios: misticismo guerreiro e êxtase ritual

Os trácios habitaram a região dos Bálcãs (atualmente Bulgária, Romênia, partes da Grécia e Turquia europeia) entre o II milênio a.C. e o século I d.C., quando foram assimilados pelo Império Romano.

Sua religiosidade era fortemente marcada por:

  • Culto aos mortos e aos ancestrais, com tumbas ricas e complexos rituais fúnebres;

  • Uma dimensão xamânica e extática, com sacerdotes em transe, possivelmente com uso de entorpecentes;

  • Um deus central identificado com Zalmoxis (ou Zamolxis), uma figura semi-divina de imortalidade e transcendência, que teria ensinado que a morte era apenas uma transição.

Heródoto, o historiador grego, relatou que os trácios acreditavam na imortalidade da alma — uma ideia rara no mundo antigo, e que pode ter influenciado o pitagorismo e o orfismo grego.

Outros elementos sugerem práticas de sacrifício humano ritual e um culto solar vinculado ao ciclo das estações e da guerra.

Citas: religião nômade da estepe e da espada

Os citas eram povos iranianos nômades que dominaram vastas regiões das estepes euro-asiáticas, entre o Mar Negro e a Ásia Central, entre os séculos IX e III a.C.

Apesar de serem considerados “bárbaros” pelos gregos, sua cultura religiosa era extremamente rica, com destaque para:

  • Culto à espada: os citas fincavam espadas no chão e as adoravam como manifestação de seu deus guerreiro supremo.

  • Panteão com divindades identificadas por Heródoto com deuses gregos:

    • Tabiti (como Héstia), deusa do fogo sagrado;

    • Papai (Zeus), deus celeste;

    • Api (Gaia), deusa da terra;

    • Argimpasa, deusa da fertilidade e da lua;

    • E sobretudo o deus Ares, que talvez corresponda a um espírito da guerra e do sangue.

  • Práticas xamânicas: os sacerdotes (ou “enarees”) podiam assumir comportamentos de gênero ambíguo e realizavam rituais de cura e adivinhação;

  • Rituais funerários riquíssimos, com sacrifícios de cavalos, servos e bens para acompanhar o morto ao além.

Para os citas, a guerra era uma dimensão sagrada, e a morte no campo de batalha um meio de transcendência.

Etruscos: presságios do céu e os deuses do subterrâneo

Os etruscos, habitantes da Etrúria (atual Toscana, na Itália), desenvolveram uma das civilizações mais enigmáticas do Mediterrâneo pré-romano, entre os séculos IX e I a.C.

A religião etrusca influenciou diretamente a religião romana, mas continha traços próprios e profundamente enraizados:

  • Acreditavam que o mundo era regulado por leis divinas imutáveis, reveladas por seres semidivinos chamados “haruspices”, que interpretavam os presságios a partir do fígado de animais, relâmpagos e fenômenos naturais.

  • O universo era governado por um conselho de deuses liderado por Tinia (semelhante a Zeus/Júpiter), ao lado de Uni (deusa-mãe) e Menrva (guerreira e intelectual).

  • Praticavam um culto detalhado aos mortos, com túmulos sofisticados que imitavam casas, pintados com cenas do além — um além-vida temido, povoado por demônios e entidades sombrias como Charun e Vanth.

  • A religião era orientada por uma revelação mítica chamada “disciplina etrusca”, um corpo de conhecimento divino supostamente revelado por um ser miraculoso, Tages, nascido da terra como uma criança sábia.

O centro da espiritualidade etrusca era a leitura do invisível: um mundo sutil, invisível aos olhos comuns, mas acessível por sinais e códigos divinos.

Bascos: o mistério que sobreviveu

Os bascos são um povo enigmático, com origem pré-indo-europeia, cuja língua (o euskera) e cultura sobreviveram apesar de todas as tentativas de assimilação. Sua religião original é uma das menos documentadas, mas não por isso menos intrigante.

Sabe-se que:

  • Cultuavam uma deusa-mãe primordial, Mari, senhora das montanhas, das tempestades e da terra. Mari podia assumir forma de mulher, árvore, serpente ou fogo.

  • Associado a ela, havia um deus masculino, Sugaar, ligado ao relâmpago, ao sexo e à fertilidade.

  • As montanhas eram consideradas lugares sagrados, assim como cavernas, fontes e tempestades.

  • A religiosidade basca sobreviveu em práticas populares, como o culto aos mortos, oferendas em grutas e danças rituais — muitas delas perseguidas pela Inquisição como bruxaria.

  • O cristianismo basco absorveu muitos desses elementos, resultando em um sincretismo onde santos convivem com fadas, espíritos e encantamentos.

A religião basca pré-cristã é, portanto, um dos últimos bastiões de uma espiritualidade europeia matriarcal e naturalista.

Um legado apagado — ou subterrâneo?

Todas essas religiões compartilham uma característica: foram suprimidas ou absorvidas pelas potências emergentes — Grécia, Roma, Cristianismo — e sobreviveram apenas em fragmentos.

Mas esses fragmentos são reveladores:

  • Mostram uma espiritualidade integrada à vida concreta: morte, guerra, fertilidade, clima, território;

  • Trazem um senso profundo de sagrado ligado à natureza e aos ancestrais;

  • E apontam para uma Europa ancestral que não era homogênea, mas cheia de mundos e deuses que hoje apenas sussurram — em ruínas, lendas ou tradições populares.

Conclusão: os ecos antes do dogma

Antes dos dogmas, havia rituais.
Antes dos textos, havia trovões.
Antes das igrejas, havia cavernas, pedras, colinas, espadas e fogo.

As religiões dos trácios, citas, etruscos e bascos são ecos de um mundo em que o sagrado estava por toda parte, e onde a fronteira entre o visível e o invisível era tênue, mas fundamental.

Hoje, esses ecos voltam — não como um retorno literal, mas como memória e inquietação, como resistência à ideia de que só o que foi escrito sobrevive.