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Antes da chegada forçada do cristianismo entre os séculos IX e XIII, os povos bálticos (como lituanos, letões e prussianos) e eslavos (russos, ucranianos, bielorrussos, poloneses, sérvios, entre outros) possuíam sistemas religiosos complexos, profundamente ligados à natureza, aos deuses tribais e à ancestralidade.
Essa religiosidade não era codificada em textos sagrados nem centralizada em templos. Era oral, ritualística, agrícola e cósmica — algo que se vivia, mais do que se professava.
Ao contrário das grandes religiões abraâmicas, as religiões bálticas e eslavas não deixaram escrituras. O que sabemos vem de:
Cronistas cristãos (muitas vezes hostis ou tendenciosos);
Registros arqueológicos (ídolos, santuários, ossuários);
Sobrevivência folclórica (músicas, contos, rituais);
Etnografia e reconstruções modernas.
É preciso cautela: a reconstrução dessas religiões exige olhar crítico, pois muito do que foi registrado passou pelos filtros da colonização cristã ou da idealização moderna.
Tanto para os bálticos quanto para os eslavos, o mundo era animado por forças espirituais múltiplas e hierarquizadas. O universo estava dividido em três camadas:
O mundo superior (céu, deuses solares, o raio, a luz);
O mundo intermediário (terra, humanos, natureza);
O mundo inferior (ancestrais, mortos, espíritos da terra).
Essas camadas estavam conectadas pela Árvore do Mundo (semelhante ao Yggdrasil nórdico), e os rituais buscavam manter o equilíbrio cósmico, especialmente nos ciclos do ano e da fertilidade.
Entre os eslavos, havia uma miríade de deuses locais, mas alguns se destacam como grandes arquétipos:
Perun: deus do trovão, da guerra e do raio, semelhante a Thor ou Júpiter. Símbolo da força celeste e da ordem.
Veles: senhor do submundo, do gado, da magia e da morte. Arquirrival de Perun — sua guerra cíclica com o deus do trovão representa o ciclo das estações.
Mokosh: deusa da terra, da fertilidade e da fiação, protetora das mulheres e das colheitas.
Svarog: deus do fogo e do céu, criador da ordem e pai de outros deuses como Dazbog (sol) e Svarozhich (fogo doméstico).
Lada: deusa da beleza, do amor e da primavera, associada a ritos de renovação.
Morana (Marzanna): deusa do inverno e da morte, que era ritualmente “morta” e afogada na primavera para garantir a renovação da vida.
Cada vila ou tribo podia ter divindades locais, espíritos tutelares e formas próprias de culto.
Na Lituânia e Letônia, onde o paganismo sobreviveu por mais tempo (até o século XIV/XV), o sistema religioso era igualmente plural:
Dievas: deus supremo celeste, ligado ao destino e à ordem cósmica.
Perkūnas: deus do trovão e da justiça, semelhante ao Perun eslavo.
Laima: deusa do destino, da sorte e da vida das crianças.
Velnias: figura ambígua, ligada aos mortos, à fertilidade e à transgressão.
Os bálticos mantinham templos de fogo sagrado, onde sacerdotes e sacerdotisas cuidavam de chamas perpétuas. Também realizavam sacrifícios de animais e oferendas em bosques, rios e colinas sagradas.
A vida religiosa girava em torno das estações do ano, do plantio e da colheita, do nascimento à morte. Entre os rituais e festas destacam-se:
Kupala (ou Ivan Kupala): celebração do solstício de verão, com fogueiras, danças, saltos rituais e mergulhos em rios — um rito de purificação e fertilidade;
Maslenitsa (ou Kresmas): festival de fim do inverno, com comidas ricas e queima de bonecos, marcando a despedida da escuridão;
Dziady / Vėlinės: culto aos ancestrais, com visitas aos túmulos, refeições simbólicas e velas — uma das práticas mais persistentes até hoje.
Os rituais domésticos eram fundamentais: acender o fogo da casa, benzer o campo, proteger o gado, guardar amuletos. Tudo era impregnado de espiritualidade cotidiana.
As religiões eslavas e bálticas não eram apenas devocionais, mas animistas: tudo tinha alma. Espíritos locais e elementares conviviam com os humanos, exigindo respeito e oferendas:
Domovoi: espírito do lar, que protegia ou punia conforme o comportamento da família.
Leshy: guardião das florestas, senhor dos animais selvagens.
Rusalka: ninfa aquática, por vezes perigosa, ligada à fertilidade ou à morte trágica.
Zaltys (na Lituânia): serpente sagrada protetora da casa, ligada ao fogo e à sorte.
Esses espíritos muitas vezes sobreviveram à cristianização como personagens folclóricos ou demônios reinterpretados.
A conversão ao cristianismo nos mundos eslavo e báltico foi lenta, forçada e violenta, muitas vezes acompanhada de perseguições, destruição de ídolos, queima de santuários e apagamento cultural.
A Lituânia foi o último país europeu a se cristianizar formalmente (1387) — e ainda assim, o paganismo resistiu de forma clandestina por séculos.
Na Rússia, a cristianização do século X incorporou elementos eslavos em santos, datas e ritos — um processo de sincretismo que gerou formas únicas de religiosidade popular.
A partir do século XX, especialmente após a queda do bloco soviético, surgiu um forte movimento de renascimento das religiões étnicas eslavas e bálticas, conhecido como:
Rodnovery (Fé Nativa) nos países eslavos;
Dievturība na Letônia;
Romuva na Lituânia.
Esses movimentos buscam reconectar as populações modernas com suas raízes espirituais indígenas, recriando rituais, calendários, festivais e até reerguendo santuários antigos.
Apesar de variações internas — e de apropriações políticas perigosas em alguns contextos —, esses movimentos revelam um desejo profundo de reencantar o mundo, de reviver uma espiritualidade viva, comunitária e enraizada.
As religiões bálticas e eslavas não deixaram livros sagrados. Mas deixaram árvores, pedras, canções e silêncios que ainda falam. Foram suprimidas, mas nunca apagadas.
Ainda hoje, nas danças ao redor do fogo, nas fogueiras do Kupala, nos contos transmitidos pelas avós, sobrevive uma espiritualidade que não separa o sagrado do cotidiano, o humano do natural, a vida da morte.
Entre trovões, colheitas e espíritos da floresta, essas tradições nos lembram de algo essencial: a terra em que pisamos não é só solo — é memória, mistério e lar dos deuses antigos.