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Antes de Israel, antes da Grécia, antes de Cartago — os cananeus já construíam templos, cultuavam deuses ambivalentes e realizavam rituais que chocaram tanto seus vizinhos quanto os futuros cronistas bíblicos. Sob esse nome genérico — “cananeus” — encontramos uma miríade de cidades-estado semíticas espalhadas pelo Levante (atual Líbano, Síria, Israel e Palestina), das quais os fenícios foram os herdeiros e navegadores.
Diferente do monoteísmo posterior, a religião cananeia e fenícia era orgânica, plural, sensual, e profundamente integrada à fertilidade da terra e aos ciclos cósmicos. E, no entanto, também carregava uma sombra: sacrifícios humanos, rituais secretos, e um panteão onde o bem e o mal não se excluíam, mas se equilibravam em tensão eterna.
Cananeus: termo abrangente usado pelos egípcios, hebreus e outros para descrever os povos que habitavam a região do Levante entre 2000 e 1000 a.C. Incluíam cidades como Ugarit, Hazor, Sidom, Jerusalém e outras.
Fenícios: descendentes culturais dos cananeus do norte, com destaque para Tiro, Sídon e Biblos. Foram grandes navegadores, comerciantes e colonizadores (fundadores de Cartago, por exemplo).
Embora separados cronologicamente, ambos partilham a mesma base religiosa, com divindades, mitos e ritos similares.
O panteão cananeu-fenício não era estático. Cada cidade possuía seu deus tutelar, mas havia um núcleo comum de divindades:
El – o deus supremo, patriarcal, criador dos deuses, às vezes distante.
Baal (Hadad) – deus das tempestades, da fertilidade e da guerra; central no culto popular. Seu nome significa “Senhor”.
Asherah (Aserá) – deusa-mãe, consorte de El; associada às árvores sagradas e à fertilidade.
Anat – deusa virgem da guerra e do amor; violenta, impiedosa e poderosa.
Astarté (Ishtar) – deusa do desejo, sexualidade, guerra; mais presente entre os fenícios.
Mot – deus da morte e do submundo; antagonista de Baal.
Yam – deus do mar e do caos; também inimigo de Baal.
Não havia uma rígida moralidade divina. Os deuses amavam, guerreavam, matavam e ressuscitavam — não como exemplos éticos, mas como expressões dos ciclos naturais.
O Ciclo de Baal, encontrado nas tábuas de Ugarit (século XIV a.C.), é um dos mais antigos conjuntos mitológicos do mundo. Nele, Baal derrota Yam (o caos marítimo), mas depois é morto por Mot (a morte), descendo ao submundo. Sua irmã Anat vinga sua morte, esquartejando Mot. Baal retorna — e a terra floresce novamente.
Esse ciclo dramatiza as estações do ano, as secas e chuvas, os períodos de morte e renascimento. Baal é, assim, o deus agonizante — um arquétipo que ressurgirá em várias religiões mediterrâneas (Adônis, Tamuz, Osíris e até em algumas leituras de Cristo).
Os templos eram construções simples mas sólidas, muitas vezes em colinas ou “lugares altos” (bamot), onde os deuses podiam ser mais próximos do céu. Os rituais incluíam:
Sacrifícios animais (e, em certos períodos, humanos — especialmente em tempos de crise).
Ofertas de vinho, pão, incenso e azeite.
Cultos ligados à fertilidade com danças, cânticos e possivelmente rituais sexuais sagrados.
Uso de estelas e postes sagrados (representando Asherah) nos santuários.
Os fenícios, com sua cultura marítima, também veneravam Astarté e Melqart (versão local de Baal) como protetores dos navegantes.
Fontes gregas, romanas e hebraicas (como a Bíblia) acusam os cananeus e fenícios de praticarem sacrifícios de crianças ao deus Moloque (possivelmente um título de Baal ou uma divindade separada). Escavações em Cartago (fundada pelos fenícios) revelaram urnas com restos de crianças queimadas — embora haja debate se eram sacrifícios rituais ou sepultamentos cerimoniais.
Mesmo que parte do discurso anti-fenício antigo seja propagandístico, há indícios fortes de que sacrifícios humanos ocorriam em contextos extremos: guerras, pestes, secas. Não era algo cotidiano, mas tampouco ficção pura.
A religião cananeia influenciou profundamente:
O Judaísmo antigo, que herdou muitos elementos linguísticos e simbólicos (El, Shaddai, até parte dos Salmos) e combateu o culto a Baal e Asherah.
A Grécia antiga, especialmente por meio das colônias fenícias, influenciando mitos sobre Afrodite, Ares e Adônis.
As religiões mediterrâneas em geral, com o tema do deus que morre e renasce.
A Bíblia hebraica apresenta uma luta constante contra a “idolatria cananeia”, mas também absorve parte dela — talvez sem perceber. Alguns estudiosos sugerem que Javé, nos primeiros séculos, teria características sincréticas com El ou Baal.
Os fenícios levaram sua religião para o norte da África, Sicília, Sardenha e Espanha. Em Cartago, Melqart (um avatar de Baal) tornou-se o deus supremo, e Astarté continuou sendo cultuada.
Lá, a religião tornou-se mais fechada, esotérica e ritualizada, sendo uma das últimas a manter práticas como o sacrifício humano até a queda da cidade frente a Roma (146 a.C.). O temor romano diante da religião cartaginesa moldou parte da propaganda que levou à sua destruição.
Diferente do monoteísmo ético e transcendente que surgiria depois, a religião cananeia-fenícia era imanente. Os deuses estavam na terra, nas tempestades, no desejo, na morte. A divindade era uma força viva e contraditória, tão caótica quanto fecunda.
Não havia “salvação” ou “redenção”, mas ritual, ciclo e continuidade. Era uma religião de presença, não de promessa. De comunhão com a natureza, mas também de temor diante de sua fúria.
Mark S. Smith – The Early History of God: Yahweh and the Other Deities in Ancient Israel
John Day – Yahweh and the Gods and Goddesses of Canaan
William Dever – Did God Have a Wife?
Philip Johnston – The Cultic Practices of Ancient Israel
Textos de Ugarit (KTU) – Traduções modernas do Ciclo de Baal
A religião dos cananeus e fenícios foi esquecida, demonizada, apagada — mas não desapareceu. Seus ecos ainda vibram em nossos mitos, nossos medos e nossas metáforas. E talvez, sob os nomes novos dos deuses, algo de Baal e Astarté ainda sobreviva.