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Após Suméria e Acádia pavimentarem os alicerces do pensamento religioso estruturado, Babilônia e Assíria ergueram templos ainda mais grandiosos e mitos ainda mais sistematizados. Entre a glória de Hamurabi e a violência ritual dos assírios, as religiões dessas civilizações mesopotâmicas consolidaram um tipo de fé imperial: política, hierárquica, feroz — mas também sofisticada, profundamente simbólica e, acima de tudo, duradoura.
Não se trata aqui de meros cultos politeístas, mas de uma metafísica inteira em que cosmos, poder e divindade formavam uma tríade indissociável. Com os babilônios, surge o primeiro “deus imperial”. Com os assírios, o terror sagrado como instrumento de conquista.
A Babilônia emerge por volta de 1894 a.C. como sucessora cultural da Suméria e da Acádia. Seu ápice vem com o reinado de Hamurabi (c. 1792–1750 a.C.), autor do famoso código jurídico que atribuía sua autoridade à vontade divina. A cidade de Babilônia, cujo nome significa “Porta dos Deuses” (Bab-ilu), tornou-se o centro espiritual da Mesopotâmia.
A Assíria, por sua vez, desenvolveu-se ao norte, tornando-se um império brutalmente eficiente entre os séculos XIV e VII a.C. Seu auge foi marcado por campanhas militares devastadoras e por uma religião estatal centrada na figura de Assur, o deus nacional.
Apesar das diferenças políticas e geográficas, ambas civilizações partilhavam o panteão e os mitos herdados dos sumérios e acádios — reinterpretados sob novas lentes: as da realeza, da dominação e do destino universal.
O mito fundador da religião babilônica é o Enuma Elish, uma epopeia cosmogônica em que o jovem deus Marduk derrota a deusa primordial Tiamat (representação do caos) e cria o mundo a partir de seu corpo. Mais do que uma simples narrativa mítica, trata-se de uma legitimação política: Marduk representa Babilônia e sua ascensão sobre as outras cidades-estado mesopotâmicas.
Com isso, Marduk se torna o deus supremo, centralizando o poder espiritual de forma inédita. Diferente de Anu ou Enlil, ele não apenas cria a ordem, mas a impõe militarmente, com espada e magia. O universo, doravante, é fruto da guerra divina — um espelho cósmico da própria Babilônia.
O panteão era vasto, mas hierarquizado. Muitos deuses sumério-acadianos foram mantidos, com adaptações:
Marduk – deus criador, patrono de Babilônia, senhor do destino.
Ishtar (Inanna) – deusa do amor, guerra, fertilidade e destruição. Ambígua e poderosa.
Nabu – deus da escrita e da sabedoria, filho de Marduk.
Shamash (Utu) – deus do sol e da justiça, árbitro entre os deuses.
Sin (Nanna) – deus da lua, regulador do tempo.
Tiamat – dragão do caos, vencida por Marduk, matriz da criação.
A novidade babilônica foi transformar o panteão em uma hierarquia administrativa, com Marduk no topo, rodeado de conselheiros, escribas divinos e deuses-servos — um reflexo direto da estrutura imperial da corte de Babilônia.
O centro do culto era o zigurate, estrutura em degraus que servia como ponte entre o céu e a terra. O mais famoso foi o Etemenanki, dedicado a Marduk — provável inspiração para o mito bíblico da Torre de Babel.
Dentro dos templos, as estátuas dos deuses eram tratadas como entidades vivas: alimentadas, vestidas e adoradas. Havia rituais complexos de purificação, astrologia como forma de comunicação com o divino e cerimônias públicas em que o rei se humilhava diante dos deuses para reafirmar sua legitimidade.
O festival de Akitu, o Ano Novo babilônico, era o ponto alto do calendário religioso: o rei era temporariamente deposto, humilhado diante de Marduk, e só retomava o trono após os oráculos confirmarem que ele ainda detinha o favor divino. A religião aqui era política em estado puro.
Na Assíria, a religião era mais simples, porém mais agressiva. Assur, deus nacional e epônimo do império, não era apenas um deus, mas a própria personificação do Estado assírio. A guerra era sagrada, as campanhas militares eram ordenadas por Assur, e os reis eram seus executores na terra.
Os templos assírios mantinham rituais semelhantes aos babilônicos, mas com ênfase na vitória, na força e no controle total dos súditos. Religião e política se fundiam em um culto de dominação.
A iconografia assíria mostra deuses alados, reis ajoelhados, cenas de batalha sancionadas pelo sagrado. Para o assírio, conquistar povos e destruir templos inimigos era não apenas permitido — era dever religioso.
A religião babilônica também foi mãe da ciência. A astrologia, praticada nos templos, não era superstição: era uma ciência sagrada, usada para interpretar os desejos dos deuses. O céu era um livro aberto onde se lia o futuro de impérios inteiros.
A divisão do tempo em 60 minutos, o zodíaco, a matemática astronômica — tudo isso nasceu no seio dos templos, não das universidades. O sacerdote era também matemático, curandeiro, exorcista, conselheiro político.
A influência das religiões babilônica e assíria sobre o judaísmo é inegável. O Gênesis guarda paralelos com o Enuma Elish. A figura de Ishtar reaparece na Bíblia como Astarote. A torre de Babel reflete a ambição zigurática. O próprio exílio da elite hebraica na Babilônia foi fundamental para a redação e consolidação de muitos livros do Antigo Testamento.
E mais: a ideia de um Deus supremo, legislador e criador, já estava em gestação séculos antes de Javé. Só que aqui, esse Deus tinha nome, cidade e clero.
Bottéro, Jean – Religião na Babilônia Antiga
Dalley, Stephanie – Myths from Mesopotamia
Kramer, Samuel – A História começa na Suméria
Oppenheim, A. Leo – Ancient Mesopotamia: Portrait of a Dead Civilization
Bíblia Hebraica (comparações com Gênesis, Isaías, Daniel)
A religião babilônica é um espelho fascinante — e incômodo — da humanidade: um sagrado usado para controlar, mas também para sonhar. Um panteão onde deuses travam guerras que não são tão diferentes das humanas. E um aviso eterno: quando o poder se confunde com o divino, nascem impérios… e ruínas.